sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Problema da Tolerância

A questão da tolerância se apresenta, e sempre se apresentou, muito ampla e complexa, compreendendo várias questões – convivência de minorias étnicas, lingüísticas, raciais, homossexuais, loucos e deficientes. Neste ensaio, pretendemos analisar apenas dois problemas, considerados principais devido à sua relevância no Direito Constitucional contemporâneo: a tolerância religiosa e a tolerância política. No final do ensaio, pretende-se colocar um problema diante de ensinamentos de Herbert Marcuse, tocante ao tema “A Tolerância Repressiva”.
A concepção de tolerância é simples, e começa a ser difundida a partir da Reforma Protestante, promovida principalmente por Martinho Lutero, e que deu início ao Estado Moderno propriamente dito. Aqui, é impossível não nos remetermos a Max Weber, que melhor compreendeu o espírito e a formação deste Estado que colocou fim ao Antigo Regime. Weber, em “Economia e Sociedade”, deixa claro o surgimento do politeísmo de valores, ou seja, com a derrubada da Igreja, que na Idade Média assumia não só o poder espiritual mas também o poder terreno, surgem as várias concepções daquilo que é certo ou errado, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo etc. A Igreja não tinha mais o monopólio do saber. Com isso, os indivíduos passam a ter a sua própria concepção dos valores, o que faz com que estes se tornem valores relativos a cada pessoa, em cada lugar, em cada tempo histórico. É impossível, então, falar da existência de um valor absoluto e objetivo.
Eis que surge o problema da tolerância, da própria necessidade histórica do Estado Moderno. Passa a ganhar contexto a preocupação sobre a existência e coexistência entre os diferentes, entre os vários valores, e a aceitação de que é possível ter, dentro de uma sociedade, concepções e valores diversos. De modo simples, surge a pluralização de valores. Surgem questões como: é a tolerância necessária ao bem da sociedade? Ou a intolerância que é necessária para evitar o combate entre indivíduos da sociedade e mesmo evitar que um indivíduo destrua toda a coletividade? Qual a relação que deve ter o tolerante em relação aos outros? Como lidar com os intolerantes numa sociedade que majoritariamente vê a tolerância como um valor que deve ser respeitado? A questão não é simples, mas sim impossível de ser esgotada. Pretendemos apenas problematizar a questão, em um ambiente atual em que o pluralismo de valores funciona como um dos fundamentos daquele que acreditamos ser hoje o melhor regime de governo: a democracia.
Bobbio, ao escrever sobre as razões da tolerância, as divide em más razões e boas razões. A tolerância, e começamos aqui pela má razão, é acusada pelos intolerantes como um indiferentismo, caracterizando os tolerantes como pessoas céticas, que não possuem convicções firmes e não reconhecem uma verdade que possa ser defendida. Já os próprios tolerantes acusam os intolerantes de fanáticos, que acreditam que a verdade corresponde apenas a seu pensamento, sem se preocupar com as verdades dos outros indivíduos.
O tolerante, e agora uma das boas razões, defende o direito de cada indivíduo de defender a sua própria verdade, não se mostrando, portando, contra a verdade. O que diferencia um modo do outro é o método para se chegar à verdade. O tolerante, respeitoso a todas as concepções de vida, acredita que a melhor forma de se atingir a verdade é através do conhecimento de todas as convicções e a partir do debate e da persuasão encontrar uma verdade. Já o intolerante, pretende como método não considerar as outras concepções, fazendo a sua verdade prevalecer mediante o uso da força e da violência. Aqui, é adequado palavras de John Locke, o grande teorista do Estado Liberal e da Tolerância: “A verdade não necessita da violência para encontrar audiência no espírito dos homens e pode ser ensinada por meio da lei. Os erros é que reinam por meio de ajuda externas. Mas a verdade, quando não pode lograr o entendimento mediante sua própria luz, não pode consegui-lo tampouco mediante a forca de terceiros”.
Outro argumento a favor da tolerância é de tipo moral: o simples respeito aos outros. Assim, o tolerante não é indiferente à verdade, mas sim um indivíduo consciente dos direitos de todos. A verdade possui várias caras, e sua forma absoluta pode ser atingida através da comparação e da síntese – aqui entra a dialética como um relevante método do conhecimento – de todas as “verdades parciais”.
Porém, a tolerância tem também um sentido negativo, o que dá forças à intolerância. A tolerância, no seu mal uso, pode ocasionar o aparecimento de erros e maldades graves, sem que essas sejam punidas e rejeitadas, pelo simples fato de serem toleradas. Assim, entra o sentido positivo da intolerância como rigor e pulso firme, necessário para combater a própria natureza humana de incorrer no erro. Importante, mais uma vez, lembrar de Locke, de uma particularidade de seu pensamento acerca da tolerância. Locke, só admitia a intolerância em um caso: a intolerância frente aos ateus, pelo simples fato de que estes não seriam capazes de obedecer a nada, nem a um juramento, não sendo cidadãos confiáveis: "Para um ateu, nem a palavra dada, nem os pactos, nem os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, podem ser estáveis ou sagrados; ao eliminar Deus, mesmo só em pensamento, derrubam-se todas essas coisas".

II

Vamos agora ao pensamento de Marcuse e a Tolerância Repressiva. De forma simples, Marcuse professava que existe a tolerância má e a boa. A boa seria aquela que permitisse as idéias progressivas e rechaçava as reacionárias. Já a má, permitiria tudo, caindo no erro do excesso de tolerância. Bobbio contrapõe Marcuse na pergunta: quem distingue as idéias boas das más? Qual seria o critério usado? Além de que, Tolerância Repressiva é uma contradição de termos, pois a tolerância só existe quando se toleram também idéias más.
Mas é inegável que Marcuse nos deixa uma sábia lição: a tolerância não pode ser ilimitada. E qual os limites da tolerância? A própria intolerância! Os tolerantes só não podem tolerar aqueles que não respeitam os princípios da coexistência: o intolerante. Portanto, o tolerante pode tolerar tudo, menos a intolerância.

III

Saindo agora do campo da zetética, e entrando na esfera da dogmática jurídica, podemos, com total segurança, afirmar: a tolerância é considerada princípio válido e absorvido em todas as Constituições democráticas de nossos tempos. Particularmente na nossa, onde estão reconhecidas a liberdade de consciência e a liberdade de religião, com o nosso Estado se constituindo em um Estado Laico. Vale lembrar, ainda, que um dos fundamentos de nosso Estado de Direito é o princípio do pluralismo político.
Termino este ensaio, ressaltando a importância da tolerância para a consecução da democracia. E farei isto deixando aqui um conceito de democracia, dado por Bobbio, o qual consideramos um dos melhores já relatados: “É a forma de governo na qual valem normas gerais, chamadas leis fundamentais, que permitem aos membros de uma sociedade, mesmo que sejam numerosos, resolver os conflitos que inevitavelmente nascem entre grupos que defendem valores e interesses diferentes, sem necessidade de recorrer à violência" (grifo nosso).
Já é sem dúvida, como conclusão, a relação entre a tolerância e a democracia. Uma não pode existir sem a outra; onde uma não se encontra, é impossível à outra se realizar plenamente. Indagar sobre a tolerância é questionar a própria legitimidade da democracia como regime ideal de governo. Ao olharmos para não tão longe na história, é facil notar que os Estados menos democráticos se caracterizaram como os Estados mais intolerantes da humanidade - nazismo e fascismo -, que até hoje são defendidos através de argumentos utilitários. Esta é, sem sombra de dúvidas, uma das perguntas mais complexas e infindáveis de toda a história, que persiste desde Platão até Hegel, de Tocqueville a Rawls e Habermas: é a democracia a melhor forma de governo?