sábado, 29 de novembro de 2008

O novo paradigma: O Judiciário e a Política

Neste ensaio pretendemos analisar as transformações do Poder Judiciário. Tem como idéia básica a sua passagem de um poder meramente jurídico – visão liberal – para um poder político, que desenvolve importantes atividades de equilíbrio estatal e passa a ser considerado uma das instituições mais decisivas, tanto para quem se preocupa com o Poder visto de cima para baixo quanto para quem o olha de baixo para cima.
Teremos como alvo de análise nao só o Poder Judiciário em sentido amplo, mas principalmente o orgão que mais se aproxima da Política – pela sua própria natureza e importância -, a Corte Constitucional.
O Poder Judiciário começa a sofrer sensíveis alterações em um certo período da modernidade. Principalmente entre os séculos XVIII e XIX, quando ocorre a derrubada dos Estados Absolutistas e o recíproco reconhecimento de autonomia da Justiça como função estatal.
A formação dos Estados liberais tem dois modelos paradigmáticos que nos servirão de referência: o que nasceu da revolução americana de 1787 e o Estado fruto da revolução francesa de 1789. Mesmo que ambas as revoluções tenham levantado bandeiras politicamente liberais, elas deram lugar a dois modelos constitucionais essencialmente distintos entre si, o que gerou uma distinção entre o Judiciário americano e aquele previsto na França pós-revolucionária.
De forma sintética podemos dizer que no caso americano, revolução mais liberal que republicana, o Judiciário ganhou o status de poder político. Já no caso francês, o Judiciário era visto na sua função comum de justiça. A França, usou a plataforma liberal como forma de derrubar as monarquias absolutistas que usurpavam o país há tempos, enfraquecendo o Poder Executivo e fortalecendo o Legislativo – visto como o principal representante da soberania popular.
Já os EUA pareciam ter uma lúcida consciência de que governos populares também podem se mostrar despóticos e estavam, sim, sujeitos ao arbítrio. Qual a consequência disso? A Constituição americana, ao contrário da francesa, não afirmou a supremacia do Parlamento, e consciente que este Poder não poderia ficar imune a controles, seria necessário uma forma de limitar seu poder político. Vale lembrar também que na França havia uma particularidade: a desconfiança nos magistrados, principalmente naqueles do Antigo Regime, que eram vistos como representantes da nobreza e da aristocracia conservadora.
O Poder politico concedido ao Judiciário, principalmente nos EUA, era deflagrado principalmente com o mecanismo do controle de constitucionalidade das leis, conhecido propriamente como judicial review, pois “coloca o Judiciário em pé de igualdade com os demais poderes, exatamente naquela dimensão mais importante do sistema político: o processo decisório de estabelecimento de normas...”.
Quem bem destaca as diferenças entre o modelo de democracia liberal americano e francês é Tocqueville. Grande admirador da democracia americana, declara que “o mais poderoso e único contrapeso da democracia” é o Judiciário americano, principalmente se referindo à sua capacidade de controlar a constitucionalidade das leis aprovadas pela maioria política. Para Tocqueville, o Judiciário americano funcionava como um necessário obstáculo à maioria, limitando seu poder de forma à realizar os ideais da Constituição – ideais estes que não representavam uma maioria, mas toda a sociedade. O Judiciário, independente e repleto de privilégios, era a Nova Aristocracia, um poder necessário para frear as paixões democráticas.

II

Passamos do século XIX e vamos agora para o século XX. Este, será de extrema importância para a Politização do Judiciário, que ganhará contornos ainda mais acentuados.
O mecanismo de controle de constitucionalidade das leis começa a ser expandido para todos os Estados, e a nação norte-americana continuará a ser exemplo, principalmente através de sua Suprema Corte, de demonstração de Poder Judiciário como Poder Político.
Podemos dar dois exemplos americanos para melhor ilustrar o papel político do Judiciário. A Suprema Corte desempenhou importante papel no processo de implementação do chamado New Deal, projeto de recuperação econômica planejada pelo então presidente Franklin Roosevelt, elaborado após a Grande Depressão de 29. Contra o plano econômico, a Suprema Corte anulou vários dispositivos legais que visavam implementar o New Deal que já haviam passado pelo Congresso. Roosevelt se viu sem chances de ter seu plano aprovado. Propôs, então, ao Congresso, que ampliasse o número de ministros da Corte para quinze, aos invés de apenas nove, pois nomeando mais seis nomes ele poderia ter a maioria e, finalmente, não ter sua política ecônomica anulada pela Suprema Corte. Mas tal não foi preciso. Dois juízes alteraram seus votos e confirmaram a validade constitucional da legislação do New Deal, numa mudança que ficou conhecida como “the switch in time that saved nine”.
Outro exemplo emblemático encontramos no grande papel que exerceu o Judiciário americano na defesa dos direitos civis – já sobre a presidência, na Corte, de Earl Warren. O julgamento Brown versus Junta da Educação foi um dos principais, onde o Judiciário condenou escolas que praticavam a segregação racial. Poderiamos dar, aqui, vários outros exemplos, mas todos para confirmar uma idéia: o ativismo judicial. Claro que as críticas não demoraram para vir, a maioria dispondo que esse ativismo judicial gerava um “governo de juízes”, principalmente no que dizia respeito ao orgão que tem a última palavra sobre o Direito – a Corte Constitucional.
Na Europa muita coisa mudou. O modelo francês, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, parecia profundamente abalado, e vários países começaram a admitir o controle de constitucionalidade das leis. Importante destacar o papel da Constituição austríaca, sob influência do insígne Hans Kelsen.
No Brasil, o controle se encontra desde a Constituição de 1891. A Carta de 1988, porém, gerou um grande aumento no uso deste mecanismo. Seu grande número de legitimados causou um grande aumento de ações. Isso sem contar que nosso país adota o sistema híbrido de controle de constitucionalidade: o difuso e o concentrado no STF.
Na nossa opinião, uma das grandes utilidade do controle das leis é a realização da Constituição e o fato de ser um dos principais recursos das minorias políticas representativas, contra a maioria. Taylor, analisando nosso Judiciário, diz que ele representa um importante veto point no sistema institucional. Vale lembrar que o controle também confere correção e legitimação às decisões governamentais.

III

O Estado Social muito contribuiu, também, para a expansão do Judiciário e seu papel político. O Poder Jurisdicional, não pretende apenas atender à perspectiva liberal de Justiça, mas também visa a promoção da igualdade.
O grande Estado interventor na sociedade, que visa não apenas a conservá-la, mas sim a tranformá-la, provoca profundas mudanças na atuação judicial. O Judiciário passa também a ser a arena ideal para promover a defesa dos direitos novos: os direitos difusos e coletivos. E visando proteger os ideais constitucionais, surge o controle das políticas públicas pelo próprio Judiciário. Assim, o fenômeno atual da judicialização da política ou politização da justiça ganha força.
A crise que atinge o Estado do Bem Estar não reduz o papel da Justiça, muito pelo contrário, o Judiciário passa a ser visto como o único orgão que pode atender às demandas da sociedade civil. Grande demanda esta, combinada com a baixa capacidade do Judiciário.
A legislação social muito contribuiu para a expansão da Justiça – principalmente no caso brasileiro. A criação dos novos direitos já citados, as novas normas processuais – que colocam a Justiça ao alcance de atores coletivos da sociedade -, a Ação Civil Pública, as inúmeras atricuições do Ministério Público etc. Todos estes fatores, que procuram realizar os valores do Estado Social trazem grandes consequências ao Judiciário.
A judicialização da política é fenômenos inevitável, fruto de muitos outros, tais como a forte presença da democracia, o surgimento de grupos coletivos que visam ter seus interesses protegidos, uma política de defesa de direitos, atribuição de competência de defesa desses direitos e criação de instituições, tais como o Ministério Público, que representam e defendem os interesses da sociedade civil.
A polêmica em torno do Judiciário é ainda mais ampla devido à contraditoriedade de suas funções na democracia contemporânea: frear o poder das maiorias em nome das liberdades individuais, promover a igualdade de grupos por meio do acesso à Justiça e garantir a segurança jurídica das relações econômicas e do funcionamento do mercado.

IV

O grande papel do Judiciário também deve ser analisado como uma consequência da valorização contemporânea da Constituição. O surgimento da chamada Constitucionalização do Estado, que a nosso ver acarretará um Estado Judicial de Direito.
O Estado de Direito, surgido na era liberal, assenta-se sobre o monopólio estatal da produção jurídica e sobre o princípio da legalidade. É o chamado Estado Legislativo de Direito. A jurisprudência, neste Estado, não desempenha a função de produção de Direito, mas apenas seu conhecimento.
Após a Segunda Guerra Mundial, desenvolve-se o Estado Constitucional de Direito, e tem como característica central a subordinação da legalidade a uma Constituição rígida. Não basta apenas à lei respeitar uma determinada forma, deve também ter compatibilidade de conteúdo com as normas constitucionais. Aqui, a jurisprudência passa a desempenhar tarefas, invalidadando leis e interpretando de forma criativa as normas jurídicas à luz da Constituição.
A natureza da função do Judiciário, e principalmente da Corte Constitucional passa a ser vista como predominantemente política. E surge o problema de legitimidade democrática daqueles que decidem, em ultima instância, sobre a aplicação do Direito, pois não são eleitos pelos cidadãos. Acreditamos que é bom que seja assim, pois “idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis”. Porém, nem por isso não deixa de ser um poder representativo e democrático, devendo ser transparente.
Os problemas de ter o Judiciário com tantas funções é agravado, segundo Barroso, pelo texto prolixo da Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidade que envolve o Executivo e o Legislativo.

V

Iremos analisar agora um possível Estado Judicial de Direito, ou seja, um governo de juízes. É uma decorrência lógica que, com o surgimento do Estado Constitucional de Direito, o verdadeiro intérprete da Constituição passe a ter amplos poderes, algo evidente nos dias de hoje, principalmente em nosso país.
O problema começa já pela própria característica da norma constitucional. A Constituição possui, conforme Hesse e Haberle, uma textura aberta, ou seja, possuem pouca densidade normativa, dando ensejo a divergentes interpretações e com um diminuto grau de concretude. Daí surge a necessidade de instituir um orgão de seja o Guarda da Constituição e seu verdadeiro intérprete. Radbruch já dispunha que se ninguém pode dizer o que é justo, é preciso que algém defina pelo menos o que é jurídico. E a quem caberá esta competência? Impossível não lembrar, aqui, de Alexander Hamilton em O Federal:
“A interpretação das leis é própria e peculiarmente da incumbência dos tribunais. Uma Constituição é, de fato, uma Lei Fundamental e assim deve ser considerada pelos juízes. A eles pertence, portanto, determinar seu significado, assim como o de qualquer lei que provenha do corpo legislativo”.
À Corte Constitucional é atribúido grande responsabilidade: a responsabilidade de atribuir o signifcado verdadeiro ao texto da Magna Carta. O debate é mais profundo, a pergunta é o que é a lei? É o texto escrito? Não. A lei é o resultado da interpretação do texto. Assim a Constituição não é o texto escrito, mas aquilo que a Corte Constitucional diz que ela é. Adotamos aqui a concepção de Constituição dada por Peter Haberle, que vê a Constituição como “uma lei necessária mas fragmentária, indeterminada e carecida de interpretação à luz da publicidade”.
Todos os Poderes Públicos estão atrelados à Constituição, e ao Tribunal Constitucional está a responsabilidade de sua concretização. Por isso seu papel eminentemente político e o surgimento de um Estado Judicial de Direito. A Constituição é o resultado da interpretação judicial. As palavras de Alexander Pekelis reforçam isso: “ As grande cláusulas da Constituição americana, assim como as disposições mais importantes das nossas leis fundamentais, não contêm senão um apelo à honestidade e à prudência daqueles a quem é confiada a responsabiilidade da sua aplicação.
A meu ver, o problema principal ainda é o déficit de legitimidade democrática inerente ao monopólio judiciarista de interpretação autêntica da Constituição. O problema pode ser resolvido à luz da teoria de Haberle de que uma sociedade aberta e pluralista exige também uma interpretação aberta de sua Lei Maior, abrindo a sociedade dos intérpretes da Constituição, estimulando o diálogo jurídico e político entre os interpretadores oficiais – Corte Constitucional – e os vários segmentos da sociedade.
“Se vivemos num Estado de Direito, torna-se imperioso que a leitura da sua Constituição seja feita em voz alta e à luz do dia, no âmbito de um processo verdadeiramente público e republicano, num diálogo jurídico do qual participem os diversos atores sociais – agentes políticos ou não -, porque, afinal, todos os membros da sociedade, e não apenas os dirigentes, fundamentam na Constituição os seus direitos e obrigações.

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