sábado, 29 de novembro de 2008

O novo paradigma: O Judiciário e a Política

Neste ensaio pretendemos analisar as transformações do Poder Judiciário. Tem como idéia básica a sua passagem de um poder meramente jurídico – visão liberal – para um poder político, que desenvolve importantes atividades de equilíbrio estatal e passa a ser considerado uma das instituições mais decisivas, tanto para quem se preocupa com o Poder visto de cima para baixo quanto para quem o olha de baixo para cima.
Teremos como alvo de análise nao só o Poder Judiciário em sentido amplo, mas principalmente o orgão que mais se aproxima da Política – pela sua própria natureza e importância -, a Corte Constitucional.
O Poder Judiciário começa a sofrer sensíveis alterações em um certo período da modernidade. Principalmente entre os séculos XVIII e XIX, quando ocorre a derrubada dos Estados Absolutistas e o recíproco reconhecimento de autonomia da Justiça como função estatal.
A formação dos Estados liberais tem dois modelos paradigmáticos que nos servirão de referência: o que nasceu da revolução americana de 1787 e o Estado fruto da revolução francesa de 1789. Mesmo que ambas as revoluções tenham levantado bandeiras politicamente liberais, elas deram lugar a dois modelos constitucionais essencialmente distintos entre si, o que gerou uma distinção entre o Judiciário americano e aquele previsto na França pós-revolucionária.
De forma sintética podemos dizer que no caso americano, revolução mais liberal que republicana, o Judiciário ganhou o status de poder político. Já no caso francês, o Judiciário era visto na sua função comum de justiça. A França, usou a plataforma liberal como forma de derrubar as monarquias absolutistas que usurpavam o país há tempos, enfraquecendo o Poder Executivo e fortalecendo o Legislativo – visto como o principal representante da soberania popular.
Já os EUA pareciam ter uma lúcida consciência de que governos populares também podem se mostrar despóticos e estavam, sim, sujeitos ao arbítrio. Qual a consequência disso? A Constituição americana, ao contrário da francesa, não afirmou a supremacia do Parlamento, e consciente que este Poder não poderia ficar imune a controles, seria necessário uma forma de limitar seu poder político. Vale lembrar também que na França havia uma particularidade: a desconfiança nos magistrados, principalmente naqueles do Antigo Regime, que eram vistos como representantes da nobreza e da aristocracia conservadora.
O Poder politico concedido ao Judiciário, principalmente nos EUA, era deflagrado principalmente com o mecanismo do controle de constitucionalidade das leis, conhecido propriamente como judicial review, pois “coloca o Judiciário em pé de igualdade com os demais poderes, exatamente naquela dimensão mais importante do sistema político: o processo decisório de estabelecimento de normas...”.
Quem bem destaca as diferenças entre o modelo de democracia liberal americano e francês é Tocqueville. Grande admirador da democracia americana, declara que “o mais poderoso e único contrapeso da democracia” é o Judiciário americano, principalmente se referindo à sua capacidade de controlar a constitucionalidade das leis aprovadas pela maioria política. Para Tocqueville, o Judiciário americano funcionava como um necessário obstáculo à maioria, limitando seu poder de forma à realizar os ideais da Constituição – ideais estes que não representavam uma maioria, mas toda a sociedade. O Judiciário, independente e repleto de privilégios, era a Nova Aristocracia, um poder necessário para frear as paixões democráticas.

II

Passamos do século XIX e vamos agora para o século XX. Este, será de extrema importância para a Politização do Judiciário, que ganhará contornos ainda mais acentuados.
O mecanismo de controle de constitucionalidade das leis começa a ser expandido para todos os Estados, e a nação norte-americana continuará a ser exemplo, principalmente através de sua Suprema Corte, de demonstração de Poder Judiciário como Poder Político.
Podemos dar dois exemplos americanos para melhor ilustrar o papel político do Judiciário. A Suprema Corte desempenhou importante papel no processo de implementação do chamado New Deal, projeto de recuperação econômica planejada pelo então presidente Franklin Roosevelt, elaborado após a Grande Depressão de 29. Contra o plano econômico, a Suprema Corte anulou vários dispositivos legais que visavam implementar o New Deal que já haviam passado pelo Congresso. Roosevelt se viu sem chances de ter seu plano aprovado. Propôs, então, ao Congresso, que ampliasse o número de ministros da Corte para quinze, aos invés de apenas nove, pois nomeando mais seis nomes ele poderia ter a maioria e, finalmente, não ter sua política ecônomica anulada pela Suprema Corte. Mas tal não foi preciso. Dois juízes alteraram seus votos e confirmaram a validade constitucional da legislação do New Deal, numa mudança que ficou conhecida como “the switch in time that saved nine”.
Outro exemplo emblemático encontramos no grande papel que exerceu o Judiciário americano na defesa dos direitos civis – já sobre a presidência, na Corte, de Earl Warren. O julgamento Brown versus Junta da Educação foi um dos principais, onde o Judiciário condenou escolas que praticavam a segregação racial. Poderiamos dar, aqui, vários outros exemplos, mas todos para confirmar uma idéia: o ativismo judicial. Claro que as críticas não demoraram para vir, a maioria dispondo que esse ativismo judicial gerava um “governo de juízes”, principalmente no que dizia respeito ao orgão que tem a última palavra sobre o Direito – a Corte Constitucional.
Na Europa muita coisa mudou. O modelo francês, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, parecia profundamente abalado, e vários países começaram a admitir o controle de constitucionalidade das leis. Importante destacar o papel da Constituição austríaca, sob influência do insígne Hans Kelsen.
No Brasil, o controle se encontra desde a Constituição de 1891. A Carta de 1988, porém, gerou um grande aumento no uso deste mecanismo. Seu grande número de legitimados causou um grande aumento de ações. Isso sem contar que nosso país adota o sistema híbrido de controle de constitucionalidade: o difuso e o concentrado no STF.
Na nossa opinião, uma das grandes utilidade do controle das leis é a realização da Constituição e o fato de ser um dos principais recursos das minorias políticas representativas, contra a maioria. Taylor, analisando nosso Judiciário, diz que ele representa um importante veto point no sistema institucional. Vale lembrar que o controle também confere correção e legitimação às decisões governamentais.

III

O Estado Social muito contribuiu, também, para a expansão do Judiciário e seu papel político. O Poder Jurisdicional, não pretende apenas atender à perspectiva liberal de Justiça, mas também visa a promoção da igualdade.
O grande Estado interventor na sociedade, que visa não apenas a conservá-la, mas sim a tranformá-la, provoca profundas mudanças na atuação judicial. O Judiciário passa também a ser a arena ideal para promover a defesa dos direitos novos: os direitos difusos e coletivos. E visando proteger os ideais constitucionais, surge o controle das políticas públicas pelo próprio Judiciário. Assim, o fenômeno atual da judicialização da política ou politização da justiça ganha força.
A crise que atinge o Estado do Bem Estar não reduz o papel da Justiça, muito pelo contrário, o Judiciário passa a ser visto como o único orgão que pode atender às demandas da sociedade civil. Grande demanda esta, combinada com a baixa capacidade do Judiciário.
A legislação social muito contribuiu para a expansão da Justiça – principalmente no caso brasileiro. A criação dos novos direitos já citados, as novas normas processuais – que colocam a Justiça ao alcance de atores coletivos da sociedade -, a Ação Civil Pública, as inúmeras atricuições do Ministério Público etc. Todos estes fatores, que procuram realizar os valores do Estado Social trazem grandes consequências ao Judiciário.
A judicialização da política é fenômenos inevitável, fruto de muitos outros, tais como a forte presença da democracia, o surgimento de grupos coletivos que visam ter seus interesses protegidos, uma política de defesa de direitos, atribuição de competência de defesa desses direitos e criação de instituições, tais como o Ministério Público, que representam e defendem os interesses da sociedade civil.
A polêmica em torno do Judiciário é ainda mais ampla devido à contraditoriedade de suas funções na democracia contemporânea: frear o poder das maiorias em nome das liberdades individuais, promover a igualdade de grupos por meio do acesso à Justiça e garantir a segurança jurídica das relações econômicas e do funcionamento do mercado.

IV

O grande papel do Judiciário também deve ser analisado como uma consequência da valorização contemporânea da Constituição. O surgimento da chamada Constitucionalização do Estado, que a nosso ver acarretará um Estado Judicial de Direito.
O Estado de Direito, surgido na era liberal, assenta-se sobre o monopólio estatal da produção jurídica e sobre o princípio da legalidade. É o chamado Estado Legislativo de Direito. A jurisprudência, neste Estado, não desempenha a função de produção de Direito, mas apenas seu conhecimento.
Após a Segunda Guerra Mundial, desenvolve-se o Estado Constitucional de Direito, e tem como característica central a subordinação da legalidade a uma Constituição rígida. Não basta apenas à lei respeitar uma determinada forma, deve também ter compatibilidade de conteúdo com as normas constitucionais. Aqui, a jurisprudência passa a desempenhar tarefas, invalidadando leis e interpretando de forma criativa as normas jurídicas à luz da Constituição.
A natureza da função do Judiciário, e principalmente da Corte Constitucional passa a ser vista como predominantemente política. E surge o problema de legitimidade democrática daqueles que decidem, em ultima instância, sobre a aplicação do Direito, pois não são eleitos pelos cidadãos. Acreditamos que é bom que seja assim, pois “idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis”. Porém, nem por isso não deixa de ser um poder representativo e democrático, devendo ser transparente.
Os problemas de ter o Judiciário com tantas funções é agravado, segundo Barroso, pelo texto prolixo da Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidade que envolve o Executivo e o Legislativo.

V

Iremos analisar agora um possível Estado Judicial de Direito, ou seja, um governo de juízes. É uma decorrência lógica que, com o surgimento do Estado Constitucional de Direito, o verdadeiro intérprete da Constituição passe a ter amplos poderes, algo evidente nos dias de hoje, principalmente em nosso país.
O problema começa já pela própria característica da norma constitucional. A Constituição possui, conforme Hesse e Haberle, uma textura aberta, ou seja, possuem pouca densidade normativa, dando ensejo a divergentes interpretações e com um diminuto grau de concretude. Daí surge a necessidade de instituir um orgão de seja o Guarda da Constituição e seu verdadeiro intérprete. Radbruch já dispunha que se ninguém pode dizer o que é justo, é preciso que algém defina pelo menos o que é jurídico. E a quem caberá esta competência? Impossível não lembrar, aqui, de Alexander Hamilton em O Federal:
“A interpretação das leis é própria e peculiarmente da incumbência dos tribunais. Uma Constituição é, de fato, uma Lei Fundamental e assim deve ser considerada pelos juízes. A eles pertence, portanto, determinar seu significado, assim como o de qualquer lei que provenha do corpo legislativo”.
À Corte Constitucional é atribúido grande responsabilidade: a responsabilidade de atribuir o signifcado verdadeiro ao texto da Magna Carta. O debate é mais profundo, a pergunta é o que é a lei? É o texto escrito? Não. A lei é o resultado da interpretação do texto. Assim a Constituição não é o texto escrito, mas aquilo que a Corte Constitucional diz que ela é. Adotamos aqui a concepção de Constituição dada por Peter Haberle, que vê a Constituição como “uma lei necessária mas fragmentária, indeterminada e carecida de interpretação à luz da publicidade”.
Todos os Poderes Públicos estão atrelados à Constituição, e ao Tribunal Constitucional está a responsabilidade de sua concretização. Por isso seu papel eminentemente político e o surgimento de um Estado Judicial de Direito. A Constituição é o resultado da interpretação judicial. As palavras de Alexander Pekelis reforçam isso: “ As grande cláusulas da Constituição americana, assim como as disposições mais importantes das nossas leis fundamentais, não contêm senão um apelo à honestidade e à prudência daqueles a quem é confiada a responsabiilidade da sua aplicação.
A meu ver, o problema principal ainda é o déficit de legitimidade democrática inerente ao monopólio judiciarista de interpretação autêntica da Constituição. O problema pode ser resolvido à luz da teoria de Haberle de que uma sociedade aberta e pluralista exige também uma interpretação aberta de sua Lei Maior, abrindo a sociedade dos intérpretes da Constituição, estimulando o diálogo jurídico e político entre os interpretadores oficiais – Corte Constitucional – e os vários segmentos da sociedade.
“Se vivemos num Estado de Direito, torna-se imperioso que a leitura da sua Constituição seja feita em voz alta e à luz do dia, no âmbito de um processo verdadeiramente público e republicano, num diálogo jurídico do qual participem os diversos atores sociais – agentes políticos ou não -, porque, afinal, todos os membros da sociedade, e não apenas os dirigentes, fundamentam na Constituição os seus direitos e obrigações.

domingo, 9 de novembro de 2008

Crise do Estado Contemporâneo

O objetivo do presente ensaio é analisar a crise que atinge o Estado atual, crise esta que não possui apenas uma faceta, mas várias. São crises que se interpenetram e que, conjugadas, provocam a queda e o questionamento de vários dogmas do pensamento político da modernidade. Assim, através de um método analítico, chegaremos à conclusão que é preciso repensar o fenômeno político da contemporaneidade.
Como primeiro ponto, iremos analisar o elemento que sempre foi usado como conditio sine qua non do Estado Moderno: a soberania. O conceito de soberania surgiu praticamente nos anos 1500, e foi primeiramente teorizada por Jean Bodin, em sua obra Lês Six Livres de la Republique. A soberania traduz a idéia essencial do Estado moderno, ou seja, a monopolização do poder por parte de um rei, onde passa a inexistir a concorrência entre poderes distintos. No momento em que surge, na monarquia absolutista, a soberania é vista como o poder absoluto e perpétuo, sofrendo limitações apenas divinas e naturais.
Desde então, o conceito de soberania passará por várias transformações. Com Rousseau, a soberania passa das mãos do monarca para as mãos do povo. E depois, o Estado, visto como pessoa jurídica, que deterá a titularidade da mesma. Nas tradicionais aulas de Teoria Geral do Estado, vimos que a soberania é o poder juridicamente incontrastável, que possui a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e aplicação do Direito, impondo-as de forma coercitiva em um determinado território – nos dias atuais, nada mais ilusório.
Nas ultimas décadas é evidente o questionamento do conceito tradicional de soberania. Podemos ver facilmente, para começar a análise crítica, a formação de outros centros de poder, concorrentes com o próprio Estado, que operam nos campos político, econômico, cultural e religioso. Assim, alguns atores sociais passam a desempenhar funções que seriam tradicionalmente públicas. Um exemplo são os sindicatos e as organizações empresariais que patrocinam determinadas atividades e tomam decisões que deveriam ser incluídas no rol de atividades da maquina estatal.
Como segundo ponto, é impossível não lembrar do fenômeno mais debatido pelos intelectuais no século atual: a globalização. Algo que decorre diretamente da globalização e, a meu ver, senão destrói, no mínimo questiona a soberania, é o fenômeno das Organizações Internacionais. Devido a isso, os Estados passam a não ser mais independentes entre si e sem a velha capacidade de autodeterminação. A cooperação jurídica, econômica e social entre os países afeta de maneira frontal a autonomia estatal de cada um.
Ainda dentro do fenômeno da globalização, principalmente a econômica, é transparente também o papel que as multinacionais desempenham. Por serem de demasiada importância para alguns Estados – principalmente os de terceiro mundo -, esses atores econômicos passam a ter capacidade de decisão e influência que muitas vezes fogem ao controle do Estado, que se vê à mercê deles. Surge assim um fenômeno importante mas ainda duvidoso: a supremacia do econômico sobre o político.
E o que dizer, então, das grandes Organizações Internacionais financeiras, tais como o FMI? Nos é bem familiar a influência que esta organização pode ter no planejamento político, econômico e social de um país. O Estado Brasileiro muito perdeu de sua autonomia e governabilidade devido à dependência com o FMI, relação gerada pela nossa grande dívida externa.

Outro elemento que abala a soberania é a questão dos direitos humanos, surgida no pós Segunda Guerra Mundial. A dificuldade na relação direitos humanos x soberania está na própria natureza jurídica daqueles direitos, vistos como direitos universais. Assim, falando em termos mais corretos, a questão frontal à soberania é a internacionalização dos direitos humanos. A concretização dos direitos humanos passa a ser tarefa de todos – de todos os Estados –, um comprometimento com a dignidade comum. É aí então que mora o problema, pois com a criação de Jurisdições Internacionais, os Estados passam a perder sua autodeterminação em prol da eficácia dos Direitos Humanos. Mais um elemento necessário para se repensar o problema da soberania.

II

Partiremos agora para outra crise, a crise de um modelo de Estado, mais propriamente a crise do Estado Social. A faceta mais relevante dessa crise é sem dúvida a crise financeira e econômica deste modelo. O processo de intervenção do Estado na economia e na sociedade civil – que causou um grande crescimento da máquina estatal – não beneficiou apenas as classes trabalhadoras, pois através de atuações em muitos setores, por meio de grandes investimentos, também alavancou o processo da industria. O aumento nos gastos públicos, obviamente causaram um déficit nos cofres. Tudo fruto do processo de ampliação do Estado, atuando em todos os segmentos da sociedade, totalmente contraposto ao Estado-Mínimo dos liberais.
Mas, será possível retornar ao Estado-Mínimo? Os neoliberais acreditam que sim. Aliás, foi essa a idéia do Consenso de Washington, perceptível nos governos Thatcher e Reagan, pretendendo diminuir a ação estatal, principalmente sobre o sistema econômico. Porém, e os últimos acontecimentos mundiais? Esta profunda globalização econômica e a grande ligação entre os sistemas econômicos e financeiros – uma crise num Estado atinge o mundo inteiro – poderia ser combinada com um mercado livre? O que seria da economia hoje sem os pacotes bilionários dos governos mundiais? E a eleição do democrata Obama à Casa Branca? Havíamos dito, e muitos autores também o fazem, que o econômico esta prevalecendo e ditando as regras do jogo político, mas e sobre as esperanças depositadas no governo Barack Obama para resolver a crise mundial? Será que o econômico é tão independente assim do político? Será possível a volta a um Estado que já se mostrou insuficiente, como quer por exemplo Friedrich Hayek, o pai do neoliberalismo? A meu ver o Estado Social já se esgotou, porém um retorno ao Estado de moldes do Liberal parece impossível, e os acontecimentos dos últimos meses nos demonstram isso.

Outra crise inerente ao Estado Social é a crise funcional. Por admitir várias funções, este Estado parece não conseguir desempenhar nenhuma com eficácia. O ampliamento do Estado parece tê-lo tornado uma gigante maquina burocrática que não anda devido a entraves formais e materiais. Outro acontecimento paralelo é o crescimento da demanda da sociedade civil, o que obsta ainda mais as funções do poder. Quais as conseqüências? A falta de governabilidade do Estado, pois passa a não conseguir finalidades puramente públicas e assim a sociedade é que passa ela mesma a se apoderar de tais finalidades – basta observar o fenômeno das privatizações. Outra conseqüência, é sem dúvida o déficit de legitimidade do Poder Político,
A representação política também não escapa da crise do Estado Social. Os órgão representativos do Estado, principalmente o Parlamento passa a perder legitimidade por não responder às necessidades do povo, se movendo muitas vezes por interesses econômicos e não políticos. As conseqüências sobre a democracia são graves: a apatia política, pois para os indivíduos todos os atores políticos se tornam “farinha do mesmo saco” e a sociedade não deposita sua confiança nos governantes. Surgem também, os grupos de pressão, que por influência pretendem ver atendidos seus interesses particulares através do lobby sobre os representantes.
Isso sem falar no controle que tem o poder e a mídia sobre a opinião pública, direcionando-a como bem entender. Diante de tudo isso se pergunta: onde está o bem comum? Parece ser mais um dogma do Estado Moderno que não caracteriza mais o Poder Político. Nosso grande professor Celso Campilongo, devido a tudo isso, a crise da representação política, afirma que parece haver um gap entre o sistema político e o sistema social. Sistema social este cada vez mais complexo e mais difícil de atender.

III

O Direito também é profundamente abalado por essas novas realidades. Sua racionalidade vinda do Estado Liberal se mostra muitas vezes incapaz de cumprir sua funções tradicionais, tais como controle e promoção da sociedade. Passa a transferir cada vez mais para a sociedade a capacidade de impor suas próprias regras do jogo. E caem também, muitos paradigmas do Direito, paradigmas que até hoje são os ensinados nas Faculdades de Direito.
Assim, é preciso repensar o Estado Contemporâneo. Repensar e refletir em um modo de atender à sociedade do modo que o Estado deve atender, para que não perca sua justificativa de obediência e não passe a ser apenas um elemento do todo social. O Estado sempre foi a instituição mais importante e necessária para uma sociedade que caminha para a igualdade e a liberdade. O velho lema Justiça e Liberdade nunca poderá ser alcançado sem ele e este é um dogma que a meu ver nuncá será derrubado

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Problema da Tolerância

A questão da tolerância se apresenta, e sempre se apresentou, muito ampla e complexa, compreendendo várias questões – convivência de minorias étnicas, lingüísticas, raciais, homossexuais, loucos e deficientes. Neste ensaio, pretendemos analisar apenas dois problemas, considerados principais devido à sua relevância no Direito Constitucional contemporâneo: a tolerância religiosa e a tolerância política. No final do ensaio, pretende-se colocar um problema diante de ensinamentos de Herbert Marcuse, tocante ao tema “A Tolerância Repressiva”.
A concepção de tolerância é simples, e começa a ser difundida a partir da Reforma Protestante, promovida principalmente por Martinho Lutero, e que deu início ao Estado Moderno propriamente dito. Aqui, é impossível não nos remetermos a Max Weber, que melhor compreendeu o espírito e a formação deste Estado que colocou fim ao Antigo Regime. Weber, em “Economia e Sociedade”, deixa claro o surgimento do politeísmo de valores, ou seja, com a derrubada da Igreja, que na Idade Média assumia não só o poder espiritual mas também o poder terreno, surgem as várias concepções daquilo que é certo ou errado, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo etc. A Igreja não tinha mais o monopólio do saber. Com isso, os indivíduos passam a ter a sua própria concepção dos valores, o que faz com que estes se tornem valores relativos a cada pessoa, em cada lugar, em cada tempo histórico. É impossível, então, falar da existência de um valor absoluto e objetivo.
Eis que surge o problema da tolerância, da própria necessidade histórica do Estado Moderno. Passa a ganhar contexto a preocupação sobre a existência e coexistência entre os diferentes, entre os vários valores, e a aceitação de que é possível ter, dentro de uma sociedade, concepções e valores diversos. De modo simples, surge a pluralização de valores. Surgem questões como: é a tolerância necessária ao bem da sociedade? Ou a intolerância que é necessária para evitar o combate entre indivíduos da sociedade e mesmo evitar que um indivíduo destrua toda a coletividade? Qual a relação que deve ter o tolerante em relação aos outros? Como lidar com os intolerantes numa sociedade que majoritariamente vê a tolerância como um valor que deve ser respeitado? A questão não é simples, mas sim impossível de ser esgotada. Pretendemos apenas problematizar a questão, em um ambiente atual em que o pluralismo de valores funciona como um dos fundamentos daquele que acreditamos ser hoje o melhor regime de governo: a democracia.
Bobbio, ao escrever sobre as razões da tolerância, as divide em más razões e boas razões. A tolerância, e começamos aqui pela má razão, é acusada pelos intolerantes como um indiferentismo, caracterizando os tolerantes como pessoas céticas, que não possuem convicções firmes e não reconhecem uma verdade que possa ser defendida. Já os próprios tolerantes acusam os intolerantes de fanáticos, que acreditam que a verdade corresponde apenas a seu pensamento, sem se preocupar com as verdades dos outros indivíduos.
O tolerante, e agora uma das boas razões, defende o direito de cada indivíduo de defender a sua própria verdade, não se mostrando, portando, contra a verdade. O que diferencia um modo do outro é o método para se chegar à verdade. O tolerante, respeitoso a todas as concepções de vida, acredita que a melhor forma de se atingir a verdade é através do conhecimento de todas as convicções e a partir do debate e da persuasão encontrar uma verdade. Já o intolerante, pretende como método não considerar as outras concepções, fazendo a sua verdade prevalecer mediante o uso da força e da violência. Aqui, é adequado palavras de John Locke, o grande teorista do Estado Liberal e da Tolerância: “A verdade não necessita da violência para encontrar audiência no espírito dos homens e pode ser ensinada por meio da lei. Os erros é que reinam por meio de ajuda externas. Mas a verdade, quando não pode lograr o entendimento mediante sua própria luz, não pode consegui-lo tampouco mediante a forca de terceiros”.
Outro argumento a favor da tolerância é de tipo moral: o simples respeito aos outros. Assim, o tolerante não é indiferente à verdade, mas sim um indivíduo consciente dos direitos de todos. A verdade possui várias caras, e sua forma absoluta pode ser atingida através da comparação e da síntese – aqui entra a dialética como um relevante método do conhecimento – de todas as “verdades parciais”.
Porém, a tolerância tem também um sentido negativo, o que dá forças à intolerância. A tolerância, no seu mal uso, pode ocasionar o aparecimento de erros e maldades graves, sem que essas sejam punidas e rejeitadas, pelo simples fato de serem toleradas. Assim, entra o sentido positivo da intolerância como rigor e pulso firme, necessário para combater a própria natureza humana de incorrer no erro. Importante, mais uma vez, lembrar de Locke, de uma particularidade de seu pensamento acerca da tolerância. Locke, só admitia a intolerância em um caso: a intolerância frente aos ateus, pelo simples fato de que estes não seriam capazes de obedecer a nada, nem a um juramento, não sendo cidadãos confiáveis: "Para um ateu, nem a palavra dada, nem os pactos, nem os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, podem ser estáveis ou sagrados; ao eliminar Deus, mesmo só em pensamento, derrubam-se todas essas coisas".

II

Vamos agora ao pensamento de Marcuse e a Tolerância Repressiva. De forma simples, Marcuse professava que existe a tolerância má e a boa. A boa seria aquela que permitisse as idéias progressivas e rechaçava as reacionárias. Já a má, permitiria tudo, caindo no erro do excesso de tolerância. Bobbio contrapõe Marcuse na pergunta: quem distingue as idéias boas das más? Qual seria o critério usado? Além de que, Tolerância Repressiva é uma contradição de termos, pois a tolerância só existe quando se toleram também idéias más.
Mas é inegável que Marcuse nos deixa uma sábia lição: a tolerância não pode ser ilimitada. E qual os limites da tolerância? A própria intolerância! Os tolerantes só não podem tolerar aqueles que não respeitam os princípios da coexistência: o intolerante. Portanto, o tolerante pode tolerar tudo, menos a intolerância.

III

Saindo agora do campo da zetética, e entrando na esfera da dogmática jurídica, podemos, com total segurança, afirmar: a tolerância é considerada princípio válido e absorvido em todas as Constituições democráticas de nossos tempos. Particularmente na nossa, onde estão reconhecidas a liberdade de consciência e a liberdade de religião, com o nosso Estado se constituindo em um Estado Laico. Vale lembrar, ainda, que um dos fundamentos de nosso Estado de Direito é o princípio do pluralismo político.
Termino este ensaio, ressaltando a importância da tolerância para a consecução da democracia. E farei isto deixando aqui um conceito de democracia, dado por Bobbio, o qual consideramos um dos melhores já relatados: “É a forma de governo na qual valem normas gerais, chamadas leis fundamentais, que permitem aos membros de uma sociedade, mesmo que sejam numerosos, resolver os conflitos que inevitavelmente nascem entre grupos que defendem valores e interesses diferentes, sem necessidade de recorrer à violência" (grifo nosso).
Já é sem dúvida, como conclusão, a relação entre a tolerância e a democracia. Uma não pode existir sem a outra; onde uma não se encontra, é impossível à outra se realizar plenamente. Indagar sobre a tolerância é questionar a própria legitimidade da democracia como regime ideal de governo. Ao olharmos para não tão longe na história, é facil notar que os Estados menos democráticos se caracterizaram como os Estados mais intolerantes da humanidade - nazismo e fascismo -, que até hoje são defendidos através de argumentos utilitários. Esta é, sem sombra de dúvidas, uma das perguntas mais complexas e infindáveis de toda a história, que persiste desde Platão até Hegel, de Tocqueville a Rawls e Habermas: é a democracia a melhor forma de governo?